
Nossa infância, desprotegida…
Que drama acompanhamos nos últimos dias. Eram 3:40h da manhã, perdi o sono pensando em como falhamos com nossas crianças! Ela tem 10 anos, e dentro de sua própria casa, onde deveria ser seu lugar de segurança e amor, onde deveria ter a oportunidade de construir memórias em família e fortalecer sua identidade ela foi violentada nos últimos anos! Por anos, e ela não está sozinha nessa tragédia!! Milhares de outras meninas vivem o inferno dentro de casa agora mesmo. Caladas, violadas no corpo e na alma… Na pandemia, sem a escola que é uma grande aliada na denúncia de suspeita de abuso em crianças, as estatísticas de denúncia de casos caiu, mas infelizmente entendemos que não foi pela redução da violência
. Esse caso resultou ainda em uma gestação, descoberta apenas aos 5 meses de evolução por profissionais de saúde, quando procuraram um atendimento médico por dor abdominal… Como falhamos na proteção da infância. No primeiro ano da minha residência médica no HIJG eu atendi na emergência uma menina de 12 anos, com queixas urinárias, e quando levantei sua blusinha pra examinar, dei de cara com a barriguinha de uma gestante, com a “linha nigrans” bem evidente e o útero na altura do umbigo, uma gestação em torno de 20 semanas, nunca vou me esquecer dessa cena… lembro até hoje que sua mãe queria me “avançar” quando eu perguntei “se ela tinha um namorado?”, inexperiente, recém formada, tentando chegar na questão que me espantou: a mãe não percebeu a gestação da menina?? Não… ela não tinha percebido ainda… Como falhamos em proteger a infância!!
Nesse pano de fundo de um drama nacional, disputa de opinião, de imagens exclusivas de uma vida totalmente exposta e desprotegida, segue foragido um tio, adulto, abusador, impune, como nós falhamos!!E a discussão gira então em torno do aborto. Ah gente, do fundo da minha alma eu reconheço, que drama! Posso entender que muitos desejem apagar imediatamente da vida dela o fruto do abuso
. Imaginar uma menina de 10 anos gestante de um estupro, gritando dizendo que não quer mais a gestação como foi veiculado nos jornais, que tragédia! Mas nós somos os adultos aqui, deveríamos ser os maduros, quem dá a direção a ela. Ou vamos parar a quimioterapia porque ela não quer mais tratar (acompanhei a onco na residência e num estágio de 4meses em 2007, ainda escuto alguns pedindo para parar o tratamento…)? Ou vamos permitir que uma menina viva com seu avô abusador porque diz que se amam (relato de uma pequena de 8 anos abusada desde os 4 pelo tio avô, caso descoberto pela sífilis que ela adquiriu dele!). É claro que ela não desejaria seguir com nada que lhe trouxesse de volta ao caos da sua vida, agora que ela pode enxergar alguma saída. Porque falhamos com ela…
Mas a gente precisa se voltar para a punição do agressor, e falar sobre a responsabilidade de quem negligenciou sua segurança porque seus problemas não acabaram com o aborto. A gente precisa falar ainda que o aborto não apaga a violência que ela sofreu… não apaga!
Precisamos falar que dar sequencia à gestação aos 10 anos traz riscos sim, e um aborto nessa idade gestacional também, porque claramente ela não deveria gestar. Porque crianças não namoram, criança não é um adulto pequeno, a infância devia ser protegida. E nós falhamos com elas!
A gente precisa falar ainda que havia um bebê tão inocente quanto ela crescendo ali, sem voz… Ele também faz parte desse cenário. Também merecia proteção. Sendo autorizado por lei ou não, concordando ou não você com o aborto, a gente não pode minimizar a verdade de que havia um bebê ali. Um bebê se desenvolvendo, o mesmo “tipo de bebê” que a gente celebra nos ultra-sons, que se mexe, chupa o dedo, que já sente (ou só sente o bebê de uma gestação desejada?), era um bebê… Lutamos tanto para dar viabilidade a prematuros extremos, investimos milhões e cada vez surgem mais casos de sucesso em recém nascidos que há alguns anos não sobreviveriam, mas hoje superam os prognósticos. Mas “Segundo Morais, tudo começou às 17h de domingo, com a aplicação da medicação específica para provocar a inviabilidade fetal”, Revista Época, 17/08/2020. “Inviabilidade fetal”? Precisamos falar que induzimos um óbito feta!! Dói ne? Sim, porque é uma violência também
Precisamos falar que nossa sociedade recebe com pedras uma mulher que decide dar seu filho em adoção. Ei! É uma verdade, nem todas que geraram querem ser mães… muitas mulheres “ficaram com seus filhos” porque não tiveram acesso ao aborto, ou ele não foi bem sucedido. Outras entregam informalmente para avós, madrinhas, tias…
Precisamos falar que existem milhares de famílias nesse momento esperando a ligação do serviço de adoção dizendo que “seu bebê chegou”. Famílias em adoção que estão “gestantes” há anos, esperando a oportunidade de dar um lar e a proteção que essas crianças merecem e precisam tanto . Lembro de ter visto um evento programado ano passado para acolher e ajudar mulheres com uma gestação indesejada. Precisamos falar disso! Porque nem todas que entendem no aborto a única saída para sua gestação não planejada e não desejada são vítimas de estupro, ou tinham 10 anos e uma história tão trágica. Dar a oportunidade de que o bebê viva e seja acolhido em outra família não é “coisa de gente sem coração”. Precisamos falar sobre isso!
Conheço várias, várias histórias de mulheres que anos após entregar seus filhos em adoção foram atrás dessas crianças e puderam ressignificar sua história. Filhos que procuraram seus pais biológicos, tentando entender seu passado e muitas vezes reconhecendo na mãe que o entregou naquele momento, era uma mulher vulnerável, que não tinha condições de criá-lo, mas lhe permitiu a oportunidade de viver!
Também conheço muitas histórias de pessoas que nunca superaram ser abandonadas pela sua família biológica, e outras que nunca superaram ter feito um aborto no passado. Assim como muitos pais e filhos que vivem sobre o mesmo teto sem um relacionamento de verdade…
Enfim… não tem uma solução fácil para problemas tão, tão, tão complexos de nossa humanidade caída. Não gosto de discussões em redes sociais, de extremismos nem de violência nas palavras. Gosto de discutir argumentos e olhar nos olhos de quem estou conversando. Celebro a liberdade de você pensar diferente, e de poder expressar o que pensa. Leio, escuto, reflito, respeito. Mas enquanto eu tiver fôlego, defenderei a vida, por que ela importa… negra ou branca, no ventre ou num leito de um asilo de idosos, da concepção ao último suspiro… e o aborto não é a única opção. Sobre essas falhas do nosso sistema, e sobre as opções pela vida, precisamos falar.
E agir! Proteja seus filhos do abuso sexual, esteja atento aos sinais precoces de violência nas crianças ao seu redor, porque nós somos sua voz, e precisamos começar a acertar, por uma infância protegida! . Tati Lemos
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